28/04/2008

Menino, eu sou é homem, e como sou

Menino, eu sou é homem, e como sou
Novas questões colocam em xeque a masculinidade contemporânea
Carlos Haag
Edição Impressa 137 - Julho 2007
Pesquisa FAPESP -
Segundo definição eminentemente científica de Luis Fernando Verissimo, homem que é homem (o chamado HQEH) só vê futebol na TV. Bebendo cerveja. E nada de cebolinhas em conserva! HQEH arrota e não pede desculpas. HQEH não deixa a mulher mostrar a bunda, nem no Carnaval. HQEH não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vestiário, com outros homens, e assim mesmo, se olhar por mais de 30 segundos dá briga. Existe um HQEH dentro de cada brasileiro, sepultado sob camadas de civilização, de falsa sofisticação, de propaganda feminina e de acomodação. Se é fácil definir a masculinidade no humor, o HQEH é um “animal” de difícil apreensão pela ciência. “Afinal, o que é ser homem? Essa é uma pergunta de difícil resposta. Sabe-se ainda menos sobre a relação dos homens com a reprodução, sua ótica particular sobre a contracepção e os significados que atribuem à esfera reprodutiva. O fato é que os homens têm constado nas pesquisas de forma secundária, embora participem da concepção das crianças”, observa a antropóloga e doutora em demografia Sandra Garcia, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), autora do estudo recém-lançado Homens na intimidade: masculinidades contemporâneas (Holos Editora/FAPESP), baseado em sua tese de doutorado, apoiada pela FAPESP.
Disposta a incluir o HQEH nas investigações sobre demografia, Sandra foi a campo e entrevistou homens entre 25 e 55 anos, pertencentes às classes médias, para refletir sobre a identidade masculina e as mudanças nas relações de gênero. O resultado foi um misto de estereótipos do HQEH com o chamado “novo homem”. “Ser homem, segundo eles, engloba: ser heterossexual; dar grande importância ao trabalho e ao papel de provedor na identidade masculina; permanência da divisão sexual do trabalho doméstico para os da geração de 1960; manter a dupla moral sexual (“homem pode, mulher não!”). Ao mesmo tempo, há novos conceitos em cena: maior expressão da subjetividade, com possibilidade de demonstrar seus sentimentos para homens e mulheres; nova visão das dimensões do masculino e do feminino; reconhecimento da sexualidade e do prazer femininos; nova abordagem das funções paternas; e, para os da geração de 1970 e 80 em diante, uma nova postura sobre a divisão sexual do trabalho, ainda que com limites colocados pela herança social e mercado. “A identidade de gênero não é mais vista como fixa, embora sua mobilidade não necessariamente indique que a aquisição de novos valores desbanque os antigos. Ao contrário, as ambigüidades surgem justamente porque convivem juntas numa mesma subjetividade e, logo, causam conflitos que esses sujeitos tentam superar nas suas reflexões e práticas”, analisa a pesquisadora.
"Um poeta dizia que o menino é pai do homem”, pondera, com razão, Machado de Assis. “Para a maioria dos informantes, à exceção de alguns da geração de 1980, o modelo de conjugalidade a que estiveram expostos foi rigidamente marcado pelos lugares específicos de homens e mulheres: a mulher dona-de-casa e cuidadora da família e das relações entres seus membros e o homem-provedor, ausente da convivência íntima com os filhos”, nota Sandra. Isso confirma o estudo Homens, esses desconhecidos (também financiado pela FAPESP), coordenado por Maria Coleta de Oliveira, do Núcleo de Estudos da População (Nepo), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Os homens se ressentem da relação com os próprios pais, classificados como ausentes e autoritários, e vêem a paternidade como um fardo excessivo, à medida que exigem ser pais melhores do que aqueles que tiveram”, descreve a pesquisa. Mas há novidades. “Muitos depoimentos falam das dificuldades de ser pai num mundo em que o trabalho tem uma grande dimensão em suas vidas. Entretanto, a maioria afirmou que exerce a paternidade de forma mais participativa desde os primeiros cuidados. A redefinição do modelo tradicional de pai gerou um processo de reflexão sobre seu lugar na família como pai”, analisa a pesquisadora. “Verificou-se que os homens da geração de 1960 se adequaram ao modelo antigo, ausentes dos primeiros cuidados com os filhos. Os das gerações posteriores foram conduzidos pelo ‘projeto igualitário’ entre os sexos, colocando-se como presença constante da gestação aos primeiros dias dos bebês.”

Ainda assim, continua Sandra, se os homens estão ocupando um espaço maior de intimidades com os filhos, as práticas cotidianas aos cuidados afetam bem mais a vida das mulheres. A matriz de gênero, portanto, diz a autora, é atualizada mas não radicalmente transformada. “A paternidade está no horizonte desses homens, mas não é a realização de um objetivo que se deva cumprir necessariamente. A construção de uma família, o exercício da responsabilidade e o sentido social de continuidade foram trazidos pelos informantes como elementos comuns de ser pai.” Para Sandra, as mudanças observadas diante da paternidade estão no mesmo âmbito das transformações que jogaram a mulher no mercado de trabalho e exigiram uma nova configuração dos papéis de homens e mulheres nas famílias. “Eu acho difícil ser homem, corresponder às expectativas das mulheres, ser provedor, sempre forte, não deixar os sentimentos comprometerem seu desempenho profissional, sexual. O cara tem que ser um grande comedor; se a secretária é bonita, tem que ter tesão por ela. Tem toda essa cobrança”, desabafa um dos entrevistados. O mesmo se dá no mercado de trabalho. Segundo a pesquisa, os homens ainda consideram o trabalho como forma de afirmação da masculinidade, mas demandam que as parceiras contribuam para o orçamento doméstico, reclamando quando elas, desempregadas, “só procuram trabalho de meio período”. “O homem compete em tudo com a mulher, desde a cama, para ver quem tem mais prazer, até em casa, quem contribui mais, quem faz mais pela casa, quem tem mais sucesso profissional”, reclama outro informante.
Não há posições confortáveis ou duradouras, mas mudanças, desconfortos e tensões”, explica Sandra. “Os homens se vêem como multifacetados, ora atendendo às demandas externas de uma sociedade competitiva, ora construindo relações mais igualitárias, baseadas na divisão do poder entre os sexos, nem sempre de forma igual, mas buscando um caminho próprio, tentando desvencilhar-se das crenças e dos valores herdados.” Acima de tudo, continua a autora, os homens se queixam de ter que confirmar sua masculinidade para outros homens e mulheres. “Como a sexualidade é peça-chave da identidade masculina, temos a importância do cumprimento das regras de como proceder como homem, de maneira insuspeita, em oposição à figura do ‘maricas’, ameaça social bastante presente no imaginário masculino.” Homossexualidade e impotência seriam, então, as grandes ameaças ao modelo predominante de masculinidade. Há razões históricas para todos esses comportamentos? O conceito de masculinidade é algo recente, pois até o século XVIII não havia o modelo diferencial de hoje. “O monismo sexual dominou o pensamento anatômico por dois milênios, em que a mulher era vista como um homem invertido: o útero era o escroto, os ovários eram os testículos etc. O modelo de perfeição era a anatomia masculina e a mulher, pela regra fálica, era ‘menos desenvolvida’ na escala metafísica”, nota o historiador Thomas Laqueur em seu Inventando o sexo. Quando o século XIX pôs fim ao monismo, substituiu-o pelo “sexo político-ideológico que justifica diferenças morais e de comportamento entre homens e mulheres. De homem invertido, a mulher passa a ser o inverso do homem”. O HQEH não sabia o que fizera.
“A imagem de ‘homem invertido’ vai se colar ao próprio homem, que agora passaria pela irremediável chance de ser um ‘invertido sexual’. Nasce o culto à masculinidade.” Prerrogativa e fardo. “Sob a ameaça de uma feminilidade inerente, decorrente do medo de tornaram-se homossexuais, pondo seu sexo à prova, os homens tiveram que cultivar sua masculinidade e sua virilidade. “A preocupação com uma possível feminilização fez com que os homens construíssem para si uma série de papéis e traços de sua condição masculina. A sociedade masculinista burguesa e capitalista construía a sua nova imagem de homem, e como conseqüência vieram as duras provas pelas quais o homem deveria passar, como as lutas, parte dos ‘componentes do comportamento masculino’”, nota Laqueur. A masculinidade se converte em estereótipo. “O ideal masculino era um bastão erigido contra a decadência; representava um ideal de virilidade casta que entrou fortemente na consciência burguesa. Foi a rocha sobre a qual essa sociedade (e, talvez, ainda a nossa) construiu boa parte de sua auto-imagem.” Tudo tem seu preço: se no século XVIII um homem podia chorar em público e ter vertigens, no final do século XIX isso era inviável, pois comprometia a sua dignidade masculina. Mas tudo o que se contrói pode ser destruído e refeito.
“Mas romper com os valores predominantes de gênero não é tarefa fácil. É importante que modelos fixos de homens e mulheres sejam rejeitados, para trabalhar a noção de reprodução como uma construção social de gênero. Outro ponto fundamental é que, pela pesquisa, se verificou que os homens estão lidando com as angústias das mudanças mais no nível individual do que no coletivo. Isso é pouco. É necessário estimular a discussão social, dando-lhe maior intensidade”, avisa a pesquisadora. HQEH pode até não gostar de canapê ou qualquer coisa que leve mais de 30 segundos para mastigar e engolir, mas HQEH merece, sim, um espaço de discussão. De preferência, depois do jogo que está passando na TV.

http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=3276&bd=1&pg=1&lg=