14/04/2008

Onde está meu filho?


Onde está meu filho?

13/04/08

Adolescentes faltam às aulas para ir a festas regadas a drogas, bebidas e sexo com vários parceiros, muitas vezes sem uso de PRESERVATIVOS

Adriana Bernardes e Guilherme Goulart

Da equipe do Correio

Boa noite. Eu sou policial militar e o seu filho participava de uma festa com bebidas alcoólicas e possivelmente drogas durante o horário da escola. Ele não tem condições de falar ou reconhecer alguém. Não soube nem falar o nome direito. O senhor me autoriza a levá-lo para a delegacia e depois fazer um exame para avaliar a quantidade de álcool no sangue dele?


O discurso do policial do Batalhão Escolar é incisivo. O pai reage com surpresa e constrangimento, maldiz o filho Paulo (nome fictício), de 16 anos, e autoriza o PM a encaminhar o garoto ao Instituto de Medicina Legal (IML). A cena ocorreu no início da noite da última quinta-feira em uma casa de portão e muros altos no Recanto das Emas. Dezenas de meninos e meninas, embalados pela batida do funk, passaram a tarde entorpecidos pelo álcool e perderam a noção de horário. Nem repararam no incômodo provocado na vizinhança. Acabaram denunciados.


Festas como essa têm apelidos no DF. Bolo doido, miojo, bonde ou frevo viraram sinônimo de encontros abastecidos por drogas, bebidas alcoólicas e orgias. São freqüentados por jovens estudantes de pelo menos sete cidades: Taguatinga, Recanto das Emas, Samambaia, Santa Maria, Guará II, Ceilândia e Sobradinho. PMs flagraram pelo menos 16 festinhas realizadas em horário escolar entre dezembro de 2006 e abril deste ano. Só em 2008, houve seis. Mas o númeroé muito maior. Um rapaz admitiu ter promovido cerca de 50 "frevos" em 2007.


O comandante do Batalhão Escolar, tenente-coronel Nelson Garcia, desconfia que as celebrações ilegais e fora de hora tenham virado moda. "Álcool e drogas são os principais ingredientes. Sabemos também que muitas dessas festas são feitas por maiores de idade, que até arrecadam dinheiro. Está tudo errado e a comunidade deve denunciá-los. Até porque muitos pais nem imaginam o que está acontecendo", afirmou. Os organizadores normalmente usam imóveis localizados no perímetro escolar. E divulgam as festas por meio de fôlderes e sites de relacionamentos como o Orkut e o MSN.


O Correio apurou que meninos e meninas entre 11 e 17 anos são aliciados nas portas das escolas todos os dias. Entram em carros de desconhecidos e seguem para a casa de quem nunca viram para "se divertir" um pouco. Eles sabem exatamente o que estão prestes a encontrar: muita bebida barata, maconha, cocaína e sexo. Não somente entre casais de namorados. Mas em grupos de três ou quatro ou com revezamento de parceiros. Nem sempre usam CAMISINHA ou qualquer tipo de proteção contra doenças venéreas.

Cartaz apreendido pela PM numa orgia de estudantes, em Ceilândia: regras para participar


INFÂNCIA E JUVENTUDE

Cotidiano de fugas e riscos


Certos de que os filhos estão na escola, pais se chocam quando são chamados para buscá-los na delegacia. Especialistas alertam sobre a perda de valores, a falta de perspectiva e o despreparo ao lidar com os jovens


Adriana Bernardes e Guilherme Goulart

Da equipe do Correio


Depois do bolo doido, Fernanda chegou de camburão em casa

As festinhas movidas a drogas e sexo, freqüentadas por crianças e adolescentes, não têm endereço fixo nem dia e hora para ocorrer. Quem vai topa tudo. E fala abertamente sobre o que acontece. Foi assim com vários alunos de colégios de Samambaia. Sem demonstrar qualquer constrangimento, Aline*, 13 anos, contou, na presença de mais de 20 colegas, que foi ao primeiro "bolo doido" aos 11 (leia depoimento). "Rolou de tudo: sexo, maconha e pó. Eu experimentei de tudo um pouco", disse. "Prefiro escancarar do que (sic) esconder. As que dão uma de santa são as mais faladas do colégio", completou, ao ser criticada pelos outros estudantes. Ela revelou tudo à mãe. E garante que não freqüenta mais esses lugares porque cansou de levar faltas e amargou uma reprovação.


No Recanto das Emas, o "frevo" organizado em uma casa da QR 305 na última quinta-feira tinha por trás um maior de 18 anos. Um vizinho denunciou o local, onde a festa ocorria desde o início da tarde. O Batalhão Escolar chegou por volta das 17h. Pouco depois das 19h, alguns familiares estavam em frente ao portão da casa. "Achei estranha a demora, pois ele (o neto) estuda à tarde e já deveria ter voltado. Não tinha idéia de que ele participava disso", disse uma senhora de 58 anos.


O Correio apurou que um único jovem, então com 17 anos, promoveu mais de 50 festas em 2007 -média de uma por semana. Para despistar a polícia, professores, diretores, pais e "colegas dedos-duros", ele fazia os convites boca a boca ou por telefone. Ao atingir a maioridade, decidiu "dar um tempo" nas festinhas em horário escolar. Agora tem medo da polícia e da lei. "Organizava frevos. Na minha casa nunca teve droga. Só bebida e muita sacanagem. Bolo doido e bonde têm maconha e pó", distinguiu.


Em Samambaia, os encontros são monitorados pelo 11º Batalhão da PM há cerca de dois anos. "É dever de todos nós impedirmos a continuidade dessas festas. A família tem a obrigação de saber a rotina dos filhos. E as escolas precisam ter mais controle sobre os alunos", cobrou o comandante da unidade, tenente-coronel João Coneza. Algumas das festas acabaram mal. Pelo menos cinco meninas deram entrada no Hospital Regional de Samambaia no último ano alegando terem sido violentadas, segundo a PM. "Elas tiveram coma alcoólico. Há indícios de que tomaram um medicamento que faz perder a memória recente", explicou o tenente Rander Pereira, do 11º BPM.


Na última quarta-feira, os PMs evitaram que nove estudantes, cinco deles menores de 18 anos, participassem de um bolo doido na Quadra 316. O dono do imóvel tem uma extensa ficha criminal. Entre os crimes, tráfico de drogas. Ninguém foi preso porque a festa não havia começado. "Esperar que a festa começasse implicaria permitir um dano maior. Tivemos de agir antes", explicou o cabo Walter Alkimim, também do batalhão de Samambaia.


Traficantes

A PM descobriu que a maioria das festas é bancada por traficantes interessados em encontrar novos consumidores. A rede de aliciamento começa no colégio, com um jovem responsável por arrebanhar colegas. Na festa da Quadra 316 de Samambaia foi o namorado de uma aluna quem fez os convites. E ela chamou as amigas.


A participação de alunos nos frevos preocupa os diretores das escolas. A orientadora educacional de um colégio próximo à Quadra 316 organizou uma reunião assim que soube do agito de quarta-feira. "Vamos reforçar as palestras sobre sexualidade, drogas e família", adiantou a vice-diretora, Daniela Arnold. O vice-diretor de outra escola da região, João José Carneiro, acha difícil impedir a presença dos alunos nas festinhas porque eles sequer entram na escola. "Estamos mais rigorosos. O estudante só sai mais cedo com a autorização dos pais. Mas nossa atuação é limitada", reconheceu.


Foi pela direção da escola que a dona-de-casa Valéria*, 45, soube do comportamento da filha Maria*, 15. A ligação para que a família fosse buscá-la no colégio na quarta-feira assustou. A decepção veio depois. "Eu não imaginei que ela fizesse uma coisa dessas. É uma boa filha e nunca deu trabalho", contou. O pai de Fernanda*, 14 anos, também ficou chocado. Soube pela polícia que ela freqüenta bolo doido. "Ele ficou decepcionado. Brigou muito e agora não quer mais falar comigo", reclamou a menina.


Apesar da vergonha de chegar em casa em um camburão, do sermão do pai e da longa conversa com a orientadora pedagógica da escola, Fernanda garante que continuará freqüentando esse tipo de festa. "Mas só se for entre amigos e com poucas pessoas", afirmou. Perguntada sobre os motivos que a levam a insistir em tal comportamento, ela responde com outra pergunta: "Você já foi em um bolo doido? Então, nunca vai saber o motivo".


Perda de valores

As sucessivas baladas chamaram a atenção da Secretaria de Educação, que adotou algumas medidas preventivas no início do ano. Uma é a obrigatoriedade diária do preenchimento da freqüência do aluno nos 620 centros de ensino públicos do DF. "Antes, era de 15 em 15 dias. Se hoje a direção enxergar mais de duas faltas seguidas, a orientação é ligar para os pais e descobrir o que houve", afirmou a secretária-adjunta de Educação, Eunice Santos. "A gente percebe desagregação da família e perda de valores nos estudantes que freqüentam essas festinhas. A escola deve ser referência", defendeu.


Para a professora da Faculdade de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB) Lia Zanotta, o comportamento dos jovens freqüentadores das orgias é o lado trágico da perda da auto-estima e da falta de perspectiva. "A vida cotidiana é tão pouco reveladora, proporciona tão pouco bem-estar individual, que eles buscam o prazer imediato", avaliou a especialista em jovens, família e violência.


* Nomes fictícios em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

O QUE DIZ A LEI

Os artigos 223 e 224 do Código Penal estabelecem que o ato sexual ou atentado violento ao pudor praticado com menores de 14 anos, portadores de deficiências mentais ou com pessoas que não podem, de forma alguma, oferecer resistência, é estupro presumido. Nesse caso, o consentimento da vítima não tem relevância jurídico-penal. A punição para o crime varia de seis a 10 anos de prisão.


O artigo 243 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece como crime vender ou fornecer a criança ou adolescente produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica. A punição é detenção de dois a quatro anos e multa. Já o artigo 81 diz que é proibida a venda de bebidas alcoólicas para crianças e adolescentes.


depoimento

*Aline, 13 anos


"Meu primeiro bolo doido foi aos 11 anos. Minhas amigas chamaram para uma festa à tarde, lá no P Sul, em Ceilândia. Eu sabia que rolava maconha, cocaína, cola, suco gammy e sexo. Fui por curiosidade. Eu transei, fiz sexo, fumei maconha e usei pó (cocaína). Achei a minha primeira festa o máximo. Ano passado fui em mais de 20. Acabei reprovada no colégio por falta. Teve um bolo doido que deu até polícia. Uma colega bebeu, cheirou e fumou demais. Aí levei ela para o banheiro e tentei dar um banho. Mas ela não queria. Um menino começou a passar a mão nela. Aí vieram mais dois. Eu tentei impedir, mas ela queria e eles também. Deixei para lá. Os três meninos transaram com ela ao mesmo tempo. Ela teve coma alcoólico e foi parar no hospital. Nesse dia contei da festa para a minha mãe. Ela ficou assustada e chocada. Me deu muito conselho. Acabei de falar e o telefone tocou. Era a mãe daquela garota, me acusando de ter roubado o celular dela. Eu falei, 'então vamos para a delegacia porque não peguei celular de ninguém'. Só aí a mãe da menina soube da festa. A garota negou tudo e acho que a mãe dela acreditou. Logo depois ela apareceu grávida. Acho que nem sabe quem é o pai. Este ano não fui a nenhum bolo doido. Decidi parar com isso. Não quero mais ser reprovada por farra."


* Nome fictício em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Correio Braziliense